segunda-feira, 28 de março de 2011

na zero

CAPA

Seu Ismael e seus amigos

Maria Tomaselli cria gravuras e um blog sobre um morador de rua morto na noite de Natal e seus companheiros


Sobre uma das mesas do ateliê de Maria Tomaselli, na Zona Sul da Capital, estão dispostas seis gravuras e uma espécie de pasta. Ao todo, são 11 álbuns como este, que ainda não têm destino certo (é um trabalho em andamento), com uma exceção. Um deles será entregue a um grupo de moradores de rua com quem Tomaselli conversou frequente e – por que não dizer – obstinadamente para descobrir, afinal, o que aconteceu com Seu Ismael na noite de Natal do ano passado.

No dia 25 de dezembro, percorrendo de carro um de seus trajetos habituais do apartamento para o ateliê, a artista parou em um mercado. Percebeu certo agito. Uma mulher chamava a atenção para o corpo de um morador de rua morto sob uma marquise. Tomaselli caminhou até o local e viu uma cena patética, que ficou registrada na memória e, depois, em gravura: o rosto do cadáver sobrevoado por moscas que entravam pela boca aberta.

Tomaselli voltou diversas vezes ao local, no bairro Teresópolis, em busca da história de Seu Ismael. Travou conversas com um grupo de moradores de rua que comentaram ser amigos. Contaram que, certa vez, ele teria sido golpeado por um “pedreiro” do crack que queria seu dinheiro. Debilitado, teria morrido dias depois, de convulsão. De sua história, soube que teria vindo de Santo Ângelo, depois de matar dois sujeitos que teriam abusado de sua mãe. Tinha mulher e filha, mas cedeu à bebida e acabou na rua.

A experiência impeliu Maria Tomaselli a criar as gravuras: estão lá Seu Ismael, os amigos, o carrinho de supermercado utilizado para carregar lixo e, por fim, o cão Beethoven, um companheiro. Criou um blog (seuismael.blogspot.com) onde estão registrados diálogos com os moradores de rua, trocas de ideias com os interlocutores Marcia Tiburi e Alípio Lippstein, além do relato de como a artista acionou o prefeito José Fortunati para ajudar Leonel, que queria ir para uma instituição de desintoxicação.

Tomaselli acredita que, exceto manifestações de massa como a música pop, a arte pode ser insuficiente para fazer política:

– Se alguém quer realmente fazer alguma coisa, melhor criar uma ONG, por exemplo. Tem que trabalhar. Só fazer uma exposição em uma galeria não adianta.

No dia seguinte, a reportagem encontra alguns dos amigos de Seu Ismael. Valdir, Sidnei e Marino estão na frente de um prédio com a cadela Marcelinha. Beethoven foi dar uma volta. O carrinho de supermercado usado para levar lixo para reciclagem, a principal fonte de renda, foi roubado.

O grupo se lembra de “dona Maria”. Sidnei diz que tiveram conversas “proveitosas”. Valdir acrescenta que tem guardada a prova de uma gravura que recebeu da artista. Anda de muleta desde que um carro o atropelou quando estava de bicicleta. Sidnei espera pela ajuda de uma irmã. Marino é de poucas palavras. Assim como os outros dois, já teve mulher, mas está separado. Admitem que têm problemas com o álcool. Hoje, os amigos de Seu Ismael têm apenas uns aos outros.

– Nós estamos só pelo velhinho lá em cima – resume Sidnei.

Os pedreiros
– Ele só tinha 61 anos, Dona, mas morreu uma semana depois de levar uma cacetada na cabeça, bem ali embaixo de nossa árvore, e deram outra no peito dele também, até sangue ele cuspiu, foram os pedreiros.

– Como assim, pedreiros, foi porque ele estava atrapalhando uma obra? Eles queriam que ele saísse daquele lugar?

– Não Dona, disse o Seu Valdir e caiu na gargalhada, pedreiros do crack, das pedras. Ele tinha dinheiro e eles sabiam.

– Quanto dinheiro ele tinha? muito?

– Sim, tinha quinze real. Eu até fui com ele no hospital, e também tinha tuberculose; mas não aguentou mais muitos dias, morreu de convulsão.


(Trecho do blog seuismael.blogspot.com)


FÁBIO PRIKLADNICKI

2 comentários:

  1. Me emocionei quando vi a reportagem do Ismael, na capa do segundo caderno. Nós aqui de casa convivemos com ele, assim como todos do bairro, por muitos anos. Ele era uma pessoas diferente dos demais que viviam na mesma situação dele, não sei explicar mas ele era. Era um homem bom corrompido pelas circunstãncias da cachaça e da violência, mas em sua essência, era um homem do bem.

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  2. Esta história, me faz lembrar do livro Ensaio sobre a Cegueira.
    "Se podes olhar, vê.
    Se podes ver, repara."
    José Saramago.

    beijo

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