Seu Ismael A história de um morador de rua que morreu na noite de natal e o que veio depois
O Início
Era dia 25 de dezembro, saí cedo de casa para cuidar dos cachorros no atelier, eu precisava ver se eles tinham levado um susto com tantas bombas estouradas para festejar. Ninguém na rua, carros também não. Parei na venda de sempre aos domingos, única aberta e fácil de estacionar, durante a semana não tem jeito de parar de tantos carros na rua, e isso em Teresópolis, parece bairro quieto, quase no mato. Uma senhora entrou, aflita, enquanto eu pagava no caixa,. Olhem do outro lado da rua, parece que ele está morto. Moscas entrando pela boca aberta e com espuma e moscas entrando pelos olhos abertos, uns 70 a 80 anos ele tinha, parecendo, mas quem sabe, com essa vida que eles levam. Peguei o casaco dele e o cobri, para afastar os bichos que já estavam começando a comê-lo. O dono do mercadinho já ligou para a polícia, disse a senhora, mas se você pudesse ligar também, duas vezes é mais garantido. Fui no carro para pegar o celular, liguei e fui embora, achando que o morto já tinha dono. Tinha? Depois vieram os remorsos: não era bicho não, o que custava eu ter comprado uma vela para ele e ter esperado a polícia vir pegá-lo, que não estivesse sozinho o tempo todo, noite toda, sua última noite, noite de natal.
Dias se passaram, o rosto cor de cera com as moscas não me saía da cabeça, pensei em descobrir mais sobre o velho. Ele parece que foi funileiro, perdeu o emprego e ficou na rua, mas não sabemos muito mais disse a dona da venda. Um pouco mais adiante, na encruzilhada, embaixo de uma árvore com muita sombra, sempre vejo um amontoado de maltrapilhos, quietos. Será que eles o conheciam? Falo com eles? Não falo?
Segundo passo
Então me enchi de coragem e quando vi a tropa unida parei o carro, apresentei-me como artista plástica, com nome mas não com tudo, medo, insegurança, precaução...contei do morto, eles o conheciam, o seu Valdir era amigo dele, chorou ao lembrá-lo de como eles vieram jovens de Santo Ângelo, e sabendo do meu projeto eles adoraram, já queriam sair na Zero Hora. Um deles tinha visto o artista que fazia quadros com os catadores de lixo concorrendo agora ao Oscar... Me deram licença de tirar fotos e prometeram contar a história do Seu Ismael e de todos os outros. Moça nem queira saber, cada um de nós tem uma história para contar... as fotos já as tirei e hoje de manhã e de tarde comecei a esboçá-los, os personagens, em cobre.
As moscas
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Os pedreiros
-Ele só tinha 61 anos, Dona, mas morreu uma semana depois de levar uma cacetada na cabeça, bem ali embaixo de nossa árvore, e deram outra no peito dele também, até sangue ele cuspiu, foram os pedreiros.
-Como assim, pedreiros, foi porque ele estava atrapalhando uma obra? Eles queriam que ele saísse daquele lugar?
-Não Dona, disse o Seu Valdir e caiu na gargalhada, pedreiros do crack, das pedras. Ele tinha dinheiro e eles sabiam.
-Quanto dinheiro ele tinha? muito?
-Sim, tinha, quinze real. Eu até fui com ele no hospital, e também tinha tuberculose; mas não aguentou mais muitos dias, morreu de convulsão.
Onde vão, vai o carrinho
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Missioneiro e vingador de sua mãe
Ficou em Santo Ângelo até seus 54 anos, dizem uns, outra data dizem outros dos colegas da Rua Arnaldo Bohrer.
-Porque ele saiu das Missões, onde nasceu?
-Foi porque teve que matar. Logo dois, abusaram de sua mãe.
Não perguntei se ele foi preso, vai aparecer com o tempo.
-Mas depois que teve que matar caiu na bebida e sua mulher e sua filha não o queriam mais em casa.
As duas agora estão livres dele; estão?
O conterrâneo
O Seu Valdir estava sentado na chuva fina, murrinha.
-Podemos continu com nossa história?
-Sim, podemos, eu me lembro da senhora. Eu vim de Santo Ângelo com minha mãe que foi atrás das filhas. Tenho duas irmãs.
-O senhor não poderia morar com uma irmã?
-Poder poderia, moça, mas minhas pernas não dão, ela mora lá encima, num caminho picoso, melhor eu ficar aqui embaixo, em Teresópolis, moro com meu amigo Paulo. Eu sei falar direito, tenho boa expressão. Fui militar. O que a gente nunca pode perder, é a expressão. E a humildade. Preso ele nunca foi, Dona, ele estava foragido da polícia. Mas agora nada mais importa, não vão mais pegá-lo, ele é finado.
Seu Valdir começou a chorar. Perguntei se ele era muito, muito amigo dele.
- O Ismael era muito mais do que um amigo, era meu conterrâneo.
Brumas no cêrebro
Cada vez que chego nos “maloqueiros” (de acordo com o pequeno dicionário da língua portuguesa que uso de vez em quando esta expressão é legítima) parece que nosso papo tem que começar do início, só uma vaga lembrança eles têm de mim:
-Sim, dona, me lembro da senhora, o Ismael é falecido.
-Sei, até aí já chegamos com a nossa história, vocês poderiam me contar algo sobre como foi a remoção dele, a família ficou sabendo da morte? Houve um enterro?
-Não sabemos, mas deve ter ido para o "ML", não tinha documentos, para lá vão todos sem documentos, e depois par ao campo santo.
-Da Santa Casa?
-Sim, dona, da Santa Casa.
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O LeonelHoje apareceu um novo “cachaceiro”, jovem, parecendo uma criança ainda, embora tivesse já 20 anos, o Leonel.
-Porque estou na rua? Meus pais me abandonaram, morreram, e ninguém me encaminha. Sou viciado.
- De que, crack? Não, dona, de cigarro e cachaça, eu queria ir para uma fazenda, mas ninguém me encaminha.
O Seu Paulo, que diz morar numa casa e fazer paisagismo (perguntou se eu não tinha um serviço para ele): Também ninguém procura um posto, todos aqui poderiam receber auxílio doença ou aposentadoria pela idade, mas não se mexem, só ficam bebendo cachaça; eu também sou viciado.
Prometi voltar outro dia para saber mais do Seu Ismael.
-Dona, pode nós comprar uma cachaça?
-Não, não posso, mas posso dar um dinheirinho para vocês.
-Obrigado!
Dúvidas
Estou chegando a um ponto em que nada mais rende. Parece que a cachaça destruiu esses cérebros a tal ponto que só restam vagas lembranças que se perpetuam numa circularidade sem fim. Será que esta é a possível história de um homem que nasceu nas Missões, casou, teve família, trabalhou e caiu na sarjeta para nela findar? Apenas isso? Enterrado ninguém sabe onde exatamente. E se eu falasse com o Bira, meu amigo que tira fotos no "ML" como eles chamam o instituto?
Acesso negado
Pelo jeito não vou ficar sabendo de mais nada do Seu Ismael; a memória de seus companheiros gira em torno do sempre mesmo; ou eles não querem contar nada; mas o que poderiam contar, além do já contado, teria algo pior?
O acesso é negado pela diferença dos mundos em que vivemos, o meu e o deles; mundos que por instantes podem-se cruzar, mas no fundo estão separados por um abismo. Minha má consciência de ter abandonado um corpo humano como se fosse um cachorro morto moveu mais minha curiosidade do que minha empatia?
E agora José? O que vai ser deles após esse meu contato? Será que querem ser "encaminhados" como falou Leonel? Vão se sentir explorados? Ou, pelo menos, meu interesse deixou-os um pouco mais felizes? Ai, que impotência, que dúvidas, que mal-estar. A questão social coloca tudo na balança, até o próprio fazer artístico. Vou pensar...
Teorizando sobre arte
Puxa, jamais pensei que a partir do Seu Ismael eu ia chegar mais uma vez nesse ponto: "para que serve a arte..."
Vou ter que chamar a Márcia Tiburi para me ajudar, porque eu mesma, em 50-anos-fazendo-arte, ainda tenho dúvidas. Gravuras podem homenagear o Seu Ismael? Desenhos, pinturas, esculturas podem mexer com o mundo? Guernica fez isso? Poucos lembram que Guernica nada tinha a ver com a guerra ou algum protesto contra a guerra, a pintura foi feita para um pavilhão de exposição da Espanha nos USA e glorifica touradas, :))). Inacreditável mesmo é que depois virou ícone mundial de protesto contra guerras. Isso quer dizer que as coisas podem ser lidas de tantas maneiras diferentes que às vezes escapam das intenções dos artistas. Mas voltando para as gravuras: estou estetizando a miséria?
Leonel e a Prefeitura
Pensando em Leonel liguei para o 152 perguntando se tinha algum departamento da Prefeitura que cuidasse de moradores de rua; a moça, bem irritada sua voz, disse:
-Tem a abordagem, mas eles levam para albergues se houver lugar e se os moradores consentem, nada contra a vontade deles, provavelmente pensando que eu e queria me livrar de uns que estavam me incomodando, acho eu pelo menos.
-Não é isso, senhora, eu queria saber se havia um jeito de atender um jovem morador de rua que pede para ser levado a uma fazenda para poder se desintoxicar. Aí a moça mudou um pouco o tom de sua voz e me deu um número, o número da equipe da abordagem: 32218578....
-Esse número está programado a não receber esse tipo de ligação no momento...
Tentei religar para o 152, não atendiam mais... Vou tentar de novo... e falar com o Fortunati no Facebook.
E agorinha ouvi no rádio de que em 2050 o mundo será irreconhecível: as pessoas brigando pelos últimos recursos do planeta terra. Que perspectiva!
Surpresa agradável
O Prefeito Fortunati respondeu imediatamente no FB (será que ele mesmo lê seu FB?) e ofereceu tratar desse caso oficialmente e pediu para eu fazer um mail oficial, ágil!
Voltando às artes
Recém dei uma entrevista para o prof. Ostermann dizendo que arte não serve para fazer política, porque uma denúncia atinge apenas um grupo muito pequeno, melhor é arregaçar as mangas e fazer política mesmo, protestar, se engajar, elaborar soluções. Exceção são os cantores pop: a música que move multidões combateu com algum sucesso a guerra no Vietnã, conseguiu mobilizar multidões.. Agora, nós pobres artistas plásticos...
Aí vem a pergunta: e porque faço essas gravuras? Que ficaram mal gravadas no ácido fraco demais e estão agora no seu segundo banho. Depois vou levar uma cópia para cada um deles. Gravados em cobre eles saem de sua situação momentânea de retratados e assumem um status de permanência e abstração ,inclusive porque vão sair de lado virado, espelhados o que muda o enfoque. Abstrair um assunto humano do imediatismo momentâneo o insere na tragédia e grandeza humana. Uma foto -arte por exemplo do Achutti poderia fazer o mesmo, mas não uma da minha câmera instantânea do celular.
Comentário do Alípio Lippstein:
Com certeza a arte não serve para fazer política, pois política é arte de não fazer nada (exceto aumentar salários). Mas a arte também serve para fazer crítica. Ela critica a ilusão. A ilusão de que somos uma espécie civilizada. Nossos moradores de rua são a prova dessa ilusão. Então lá vai a realidade. A realidade é que, do ponto de vista evolutivo, a nossa espécie é muito jovem, a postura ereta, além dos problemas de coluna, hérnias, etc., trouxe mais um, o de termos de desenvolver o nosso cérebro e por conseguinte nossas habilidades, depois do nascimento. Ou seja, precisamos de ajuda, precisamos ser treinados, programados, precisamos aprender tudo. Mas isso tudo acontece no grupo social (assim como numa matilha). Até a pouco tempo tínhamos nossas matilhas, se chamavam famílias. Aprendíamos a conviver nela. Agora nem isso temos. Então, se não aprendemos a conviver, só nos restam nossos instintos. Sim aqueles bem rudimentares, os instintos de sobrevivência, que herdamos da história evolutiva. E todo mundo sabe o que acontece quando agimos por instinto. Quando olhamos para os moradores de rua, estamos olhando para esses instintos. Os que aprenderam conseguem ver a beleza (que não é instinto) deles (os moradores de rua) e de seus instintos. Os que não aprenderam (quantos são mesmo?) conseguem ver o que? Nada. Depois de uma catástrofe, como uma enchente ou um terremoto, logo estão saqueando e se trucidando. Bom, a arte está aí para nos fazer lembrar de uma coisa, de como é fácil virar um deles... Até me atrevo a perguntar, será que algum dia deixamos de ser um deles?
A reação da Prefeiturafoi de uma rapidez incrível, já me perguntaram onde ficavam os moradores e prometeram que eles iam encaminhar o Leonel. Obviamente isso foi a mando do chefe, o Fortunati, que reagiu de imediato à minha mensagem no FB. Mas como por vias normais os moradores não tem esse acesso fácil, mesmo que esse socorro ocorra (o que ainda precisa ser verificado, porque as ordens de cima muitas vezes se perdem na praia conforme descem de departamento em departamento) precisava ter um acesso fácil oficial para tratar de socorros sociais. Hoje vou passar na rua e falar com eles e colocar minhas chapas de cobre no ácido.
O comentário do Alípio me fez pensar o seguinte:
Tenho 3 cachorros lindos, superfinos tratos, barriguinha cheia, vacinas em dia, espaço grande para correr. Quando eles se comportam bem ainda por cima ganham como prêmio ossos suculentos, cada um um, osso do mesmo tamanho e da mesma vaca, portanto devem ter até cheiro parecido. O que fazem? Um quer o osso do outro e o mais inteligente (no caso a cadela, sim, nós mulheres somos terríveis) quer logo todos e briga. Essa é a sobrevivência, instintos atávicos que atravessam toda história da evolução da vida. Até os mais primitivos dos virus já têm comportamento trapaçeiro, hospedeiro, explorador de outros. Às vezes, quando tudo já está garantido e nada de essencial falta para um ser vivo, pode acontecer um ato de solidariedade. Monges em mosteiros podem dar sopa para os pobres, por que eles já comeram. Promessas de vidas melhores, como em todas as religiões, travam um pouco as agressividades individuais, mas por conta de muito medo do inferno. Porém, em tempos de profunda crise, como nas enchentes diluviais, terremotos, tsunamis, religião nenhuma manda mais, só o instinto de sobrevivência e há saques e matanças. Um vizinha contra o outro. Os imperadores saqueiam e exploram, os revolucionários acumulam fortunas nos bancos longe de seus povos aos quais prometeram igualdade e fraternidade, religiões mandam matar ou matam quem se opõe ao poder estabelecido, aos privilégios de uns poucos que se juntam para tirar proveito, mas na hora H traem a si mesmos por sempre um pouco mais.
E nós nos preocupamos com moradores de rua, crianças abandonadas enquanto temos medo de eles se revoltarem de vez e tirarem de nós o que temos. Solidariedade é uma estratégia de guerra para manutenção de privilégios: fingimos que estamos preocupados mas o medo da revolta global nós faz sermos bonzinhos.
Essa é a lei da vida e sua pujança. Ou estou enganada? Alipio?
Mas e o belo?
Tendo essa atávica pujança por de sobrevivência, de ser o mais forte, o mais possuidor de comida, de poder, de bem-estar, a humanidade sucumbe em matanças e genocídios. E, no entanto, produziu a internet, a 9ª de Beethoven, os edifícios de barro de Timbuktu, o belo! E todos, pobres e ricos gostam do belo, querem uma vestido bonito, uma louça linda, uma bolsa de grife, uma obra de arte. Algo que não é necessário para sobreviver fisiológicamente, mas que de certo cria status e poder, como as plumagens e o canto de pássaros. Poder ajuda a ganhar um par melhor para procriar e estamos de novo na evolução? Então nem as artes são privilégio só do homem mas já estão como semente nos genes, a fêmea privilegia o macho mais enfeitado, mais bonito? Fala, Alípio, mestre em biologia!
Se eu nascesse de novo, acho que eu seria geneticista, porque o que mais me intriga em todas as ciências é o ponto em que, na evolução humana, se instalou a estética e a ética como consciência da espécie homem e não apenas o instinto. Algo para além da biologia
Glamour e pobreza
Passei hoje nos meus moradores da rua Leopoldo Boehl. Leonel estava lá, sentado, esperando a Prefeitura, já que eu tinha deixado um recado para ele de que iriam aparecer...pelo linguajar da resposta da Prefeitura isso pode durar muito, se um dia se realizar, foi mais ou menos assim: os órgãos competentes vão tomar as medidas cabíveis....bom, vamos ver.
Nenhum deles está passando fome, eles parecem bem nutridos, não é uma miséria tipo Biafra , é mais uma tragédia para a alma: abandono total, exclusão da sociedade. Mas eles têm a turma, estão sempre juntos. Me lembro do caso da cozinheira do filme de Vik Muniz: "Lixo Extraordinário",: depois que ela conseguiu um dinheiro para montar seu próprio negócio não gostou e voltou para o lixão, sentindo falta dos amigos.
Todos querem se enfeitar, se pintar, se vestir, aparecer, ser glamouroso. Como no Carnaval, por exemplo. Ter algo que não serve para nada específico, apenas para ser bonito. A inutilidade em si (a não ser que voltemos para aevolução/plumas/pássaros/canto/encanto para conseguir um par para procriar). Eu tenho algo que é bonito, que é o que é sem querer ser nada: uma rosa é uma rosa, é uma rosa...As rosas não falam. Simplesmente as rosas exalam (Stein/Cartola- cito logo, se não vou ter que me demitir por plágio, :)
Comentário de Alípio Lippstein:
São seres vivos (humanos) reagindo aos estímulos do meio ambiente, inclua-se aí a prefeitura, como um desses estímulos.
Os moradores de rua não podem ser interpretados apenas como um mal social (talvez na maioria das vezes sejam) mas como uma forma de comportamento (não muito comum) da nossa espécie.
Estes indivíduos estiveram e estão presentes em qualquer sociedade. Sempre reagindo de uma forma extremamente simples em relação as suas necessidades, quando digo simples, me refiro ao oxigênio que entra naturalmente em seus pulmões, a uma fonte de água e algum alimento. Outras necessidades como moradia, vestuário, transporte, saúde, etc., não fazem parte do seu dia a dia. A natureza está cheia de exemplos de indivíduos que vivem às custas de outros. Temos casos inclusive entre vírus, que apresentando uma estratégia de "trapaça" (utilizando para si a maquinaria de duplicação de outro vírus no interior da célula) conseguem evoluir e levam vantagem sobre aqueles que cooperam. É claro que não haveria condições de manter uma população apenas de trapaceiros (ou apenas de moradores de rua), mas uma pequena proporção dentro da população sempre é possível. A adaptabilidade é um ponto forte dessas pessoas. Fome, sede, frio, resistência aos vírus, bactérias, fungos, parasitas internos e externos, fazem valer as regras Darwinianas da seleção natural, sobrevivendo apenas os organismos mais adaptados ao seu meio ambiente.
Os indivíduos que cooperam sempre serão maioria dentro da população e sempre se sujeitarão a manter todos aqueles que não cooperam, sejam sem tetos (na rua), sejam assassinos (na prisão), sejam loucos (no hospício). Por que eles se sujeitam a isso? Essa é a questão. Por que é importante manter esses comportamentos dentro da espécie? Com certeza deve haver alguma vantagem adaptativa nisso. Os que cooperam (nós) sabem da importância dessa variabilidade, precisamos dela para compreender nós mesmos. No dia em que tivermos aprendido tudo, quem sabe o comportamento egoísta se sobreponha e passe a eliminar da população todas essas facetas. Acho que não estamos longe!!! Quantos moradores de rua já foram assassinados ultimamente? Aff!!!
INACREDITÁVEL
NÃO É QUE A PREFEITURA ATENDEU MESMO OS MORADORES? O LEONEL FOI APANHADO PARA IR NUMA FAZENDA E DOS OUTROS MORADORES TOMARAM NOTA DE SUAS NECESSIDADES: FAZER DOCUMENTOS, ENCAMINHAR PARA AUXÍLIOS SAÚDE E APOSENTADORIA POR IDAD.,HOJE PASSEI LÁ, LEVEI UMAS PRIMEIRAS CÓPIAS DE GRAVURA DE SUAS "CARAS" E PERGUNTEI, SÓ POR PERGUNTAR, NÃO ESPERANDO NADA, MAS.......NOVOS VENTOS NA PREFEITURA E NOVA AGILIDADE VIA FACEBOOK, PARABÉNS, TOMARA QUE CONTINUE E QUE SEJA ASSIM EM TODAS AS ÁREAS! OS CAMINHOS RÁPIDOS FORAM FORTUNATI-KEVIN KRIEGER.
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Carta aberta de Márcia Tiburi:
Maria Tomaselli, minha amada amiga,
Estou há dias com http://www.seuismael.blogspot.com/ na cabeça. Há dias que tento entender o nexo entre o presente negativo que recebeste no Natal e o quanto ele te comoveu. Quero falar deste presente negativo.
Antes, no entanto, quero lembrar o óbvio: passaram quase 3 meses. Estamos no carnaval e pode parecer sem sentido falar de Natal a esta altura. No entanto, o Carnaval é uma efeméride muito parecida com o Natal embora pareça a ele contrária. A diferença é que no Natal o foco do ritual é a família e no Carnaval é alguma sorte de alegria relacionada à sexualidade. Ambos são festas do mercado, do capitalismo que se tornou o método comum de ocultamento da angústia humana. Em ambos os casos é a fuga da morte o que está em cena, e ninguém pode dizer que não seja um direito humano fugir.
Eu, pessoalmente, prefiro fugir destas fugas administradas. A angústia me parece bem mais interessante. Não sei bem se é o Natal ou o carnaval o me dá mais pavor, mas tendo a apostar no Natal, por que seu grau de cinismo (presentes pra cá e pra lá como um escambo de bugigangas made in China me cheira a um primitivismo de plástico, pode?). Digo isso com todo respeito às verdadeiras, bem como às falsas alegrias, afinal, estamos em um mundo democrático. Ainda que a democracia em que vivemos seja cínica e a única coisa que realmente partilhemos hoje seja a injustiça e o perigo. Ou, pra ir direito ao ponto, a morte que as festas tapam com suas vitórias paliativas sobre a dor. Não falo da morte natural que nos coloca em lugares metafísicos e transcendentais, espirituais e existenciais, mas a morte como uma impotência, um roubo, uma injustiça. Sabemos que, para os mortos, não há justiça. Também nós seremos mortos e talvez não haja justiça sobre nós, mas quem quererá enfrentar este tipo de pergunta sem deprimir-se ou olhar com raiva para o tom niilista da pergunta que nos tira da nossa paz?
Pois é esta justiça impossível o que estás tentando fazer ao rememorar a existência de Seu Ismael enquanto tens dele apenas a imagem da morte.
Pois a primeira coisa que me veio à mente foi que seu Ismael era um presente para ti. Claro que não do estatuto plastificado de um presente comprado em lojas de grife, mas um presente como o mítico corpo de Cristo que se deu àqueles que amava enquanto era ao mesmo tempo por eles sacrificado e, mais estranhamente ainda, adorado em sua imolação. Não estou falando aqui de nada que não seja o mito do Natal interpretado pelos cristãos. Cada povo e cada indivíduo (desde que também nos inventamos como sujeitos de pensamento e desejo) vive o mito à sua maneira. Neste sentido, não tenho dúvida que foi Cristo que encontraste morto na calçada. Era a atualização do Cristo do ano zero de nossa era. Era o Cristo pós-cristão, o Cristo do tempo pós-humano, do tempo pós-histórico. O Cristo de nosso tempo não está na cruz e não foi açoitado e humilhado, ele está na rua, perdido de si, bebendo, sem nome, sem sentido, sendo devorado pelas moscas que com seus mil olhos sabem que o ser humano não importa-se verdadeiramente consigo mesmo. Seu Ismael, homo sacer, o homem sagrado, aquele que pode ser morto por qualquer um e que, morto é o escândalo para o qual não temos mais sensibilidade.
Olha, minha amiga, o que significa um presente: é mais do que um objeto, é um “dado” do tempo. Não é passado, nem futuro, é atualidade. Por isso, perca este medo de estar “estetizando” o horror. A vida está cheia de horrores e só quem plastificou a alma é que diria uma coisa dessas das tuas gravuras. És uma das raras artistas que conheço que ainda se preocupa em relacionar a arte à vida, à história humana, à condição do ser humano e, sobretudo, no ponto escuro em que cada um está sozinho consigo mesmo.
Tentas salvar seu Ismael do escuro. E da maldita arma do silêncio que é tão bem usada pela ordem do mundo. Só isso. E sabes da impotência da tua arte diante da morte, porque és artista naquele exato lugar em que sabes que a vida não basta. És artista justamente porque trabalhas pela condição humana fazendo desta coisa que ainda chamamos de arte como um modo de colocar beleza no mundo, e a beleza, sabes bem, não é a cortina que tapa, nem a cirurgia moral que ortopediza a dor, é a memória de uma ferida. A memória que carrega consigo um desejo de negação.
Obrigada por nos dar a todos este presente negativo. Acho que o Natal adquiriu um sentido e que o carnaval que recorda a carne morta e sofrida pode ser menos banal do que este que finge a alegria.
Obrigada por nos lembrar do desejo de que a vida possa ser outra.
Beethoven
Ele foi o amor de Seu Ismael, sempre do lado, olhar atento. Como todo cão sem recriminar, discutir, reclamar, exigir. Nem comida pedia muita, porque quase sem dentes já não podia mastigar direito. O que vinha, vinha bem. Eles abriram a boca de Beethoven para me mostrar que estava com poucos dentes, e abriram suas bocas também, porque nisso eles se solidarizavam com o cachorro, explicando que tanto eles como ele comiam as coisas pelas beiradinhas, amolecendo-as primeiro na bochecha. Agora Beethoven está com o Seu Valdir, Otacílio, Paulo Luiz, Marino Eduardo, Paulo Roberto e Sidney. Todos o amam.
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O direito a um endereço
Conversa com nossa sobrinha que mora em São Paulo, outra Márcia genial: Ela tem uma amiga que se dedica a uma ong que cuida de moradores de rua. Preciso entrar em contato com esta pessoa, porque ela descobriu uma coisa incrível: os moradores-não-moradores/ de-rua de São Paulo estão se organizando para terem um endereço!!!!!!! um ponto de referência, de pertênça a “um lugar onde me acham ". Só assim podem ter acesso aos benefícios do governo como salário/aposentado/por/idade, auxílio doença etc. Tem isso em Porto Alegre? Há um futuro para os moradores de rua? Ou é esse o futuro de muitos de nós?
Os que foram jogados na rua contra sua vontade realmente poderiam se estruturar como os de São Paulo porque ajuda apenas filantrópica é uma gota d´água numa pedra quente. Mas os outros, os que não gostam da nossa sociedade, não gostam de regras, acreditam que nosso planeta terra é de todos e não só dos mais fortes (teoria da evolução de novo), não querem saber de albergues etc., para esses e seus cachorrinhos, há lugar na nossa terra?
O que dizer de algumas almas perdidas nas ruas das grandes cidades perante a catástrofe japonesa?
Grande espanto
Para meu grande espanto, os japoneses, com toda sua trágica luta pela pura sobrevivência e seu medo existencial de morte iminente por irradiação não fizeram saques, nem partiram para a violência. Por isso me pergunto e pergunto aos defensores do evolucionismo: a civilização não pode ganhar em última análise? A solidariedade não será mais forte?
Comentário de Alípio Lippstein:
Verdade. A única notícia que não ouvi sobre o Japão. Nenhum saque, nenhum roubo, nenhuma violência, nenhum desvio de doações, nada, nadinha. Será que os japoneses conseguiram aplacar seus genes, superar seus instintos e alcançaram o tão sonhado posto de povo civilizado? Ou será que a fartura é tanta, a organização é eficiente, o socorro funciona, que o nível de stress provocado por esta catástrofe não atingiu o limiar da liberação de uma resposta instintiva? Ora, ainda acredito na segunda hipótese. Os japoneses foram esclarecidos, treinados, re-treinados, para enfrentarem este tipo de fenômeno. Ainda mais, eles acreditam na sua organização, no seu governo e nas suas instituições. Por mais desesperadora que possa parecer esta situação eles conseguiram reagir com bom senso, com tranquilidade, com coerência, ou dito de outra forma, com civilidade, a estes acontecimentos. Reagiram assim porque a fronteira que separa o comportamento animal do humano não foi ultrapassada. E se tivesse sido? Só para lembrar, voltando um pouquinho no tempo, em 1937 o exército japonês tomou a capital chinesa Nanking, morreram em torno de 300000 chineses, além de terem violentado sexualmente mais de 20 mil mulheres. Claro que deve ter ocorrido tudo de forma bem organizada. E nem faz tanto tempo assim. O comportamento instintivo dos animais (nossos) como o instinto materno, cuidar dos filhos, desejos sexuais, instinto de preservação, falam mais alto se as estruturas complexas das relações sociais humanas falharem. Isto não aconteceu nesse episódio. Trata-se, pois, de um bom sinal. Parece que o ser humano está conquistando sua independência biológica. Quanto tempo mais precisaremos para vencer nossos genes, ou trocá-los, é outra questão!
Os 12 dias de Leonel
Passei hoje bem cedo na rua da turma: estavam eles sentados no meigo sol outonal com....o Leonel no meio. Parei o carro para saber.
-Dona, não deu.
-Como assim, não deu?
-Foi assim: primeiro me levaram para a Cruzeiro.
- Hospital do Postão?
-Sim, aí fiquei 2 dias. Depois para a Vila Nova.
- O que tem lá, a fazenda?
-Não, é o hospital, mas lá tem de tudo: tuberculosos, aidéticos, viciados, um horror. Fiquei 7 dias e aí fomos de kombi para uma fazenda, duas horas de meia de viagem, no fim de chão batido. Não gostei, me disseram: agora tu descansas uns dias, depois vais capinar. Mas lá só tinha doido, ninguém normal como eu. Aí eu disse: aqui não vou ficar, e me levaram de volta para a Vila Nova. Mas eu fiquei com saudade dos meus amigos, fiquei pensando: como será que estão e me dei alta. A assistente social não queria me dar uma passagem, assim saí ontem a pé, mas, claro, com a barrigudinha embaixo do braço.
Aí o colega do lado disse:
-o combustível do mundo.
Será que o método pedagógico aplicado (capinar) foi o mais adequado? O Leonel teria saído de lá se tivessem oferecido aprender lidar com um computador? Com o dinheiro da deputada Roriz dava para equipar a Fazenda Pacto. Mas, essa história foi contado por um lado apenas, como seria a versão do outro lado?
Um túmulo para Seu Ismael
Seu Ismael: Lhe abandonei nos minutos depois que já foi embora, mas ainda estava aqui. Eu poderia ter-lhe conhecido, mas não olhei para os lados, subindo diariamente a nossa (sua e minha) rua para minhas tarefas diárias. Não tinha visto sua turma, a não ser vagas sombras, miragens nas margens. Sua morte me fez parar, olhar, ver, perguntar, saber. Que essas gravuras guardadas por Beethoven lhe sejam um túmulo.
Anotações entre 6 de fevereiro e 19 de março de 2011