terça-feira, 8 de março de 2011

de Márcia Tiburi

http://gnt.globo.com/platb/pinkpunk/2011/03/08/carta-aberta-a-maria-tomaselli/
Carta Aberta a Maria Tomaselli

ter, 08/03/11por marcia.tiburi

Maria Tomaselli, minha amada amiga,

Estou há dias com http://www.seuismael.blogspot.com/ na cabeça. Há dias que tento entender o nexo entre o presente negativo que recebeste no Natal e o quanto ele te comoveu. Quero falar deste presente negativo.

Antes, no entanto, quero lembrar o óbvio: passaram quase 3 meses. Estamos no carnaval e pode parecer sem sentido falar de Natal a esta altura. No entanto, o Carnaval é uma efeméride muito parecida com o Natal embora pareça a ele contrária. A diferença é que no Natal o foco do ritual é a família e no Carnaval é alguma sorte de alegria relacionada à sexualidade. Ambos são festas do mercado, do capitalismo que se tornou o método comum de ocultamento da angústia humana. Em ambos os casos é a fuga da morte o que está em cena, e ninguém pode dizer que não seja um direito humano fugir.

Eu, pessoalmente, prefiro fugir destas fugas administradas. A angústia me parece bem mais interessante. Não sei bem se é o Natal ou o carnaval o me dá mais pavor, mas tendo a apostar no Natal, por que seu grau de cinismo (presentes pra cá e pra lá como um escambo de bugigangas made in China me cheira a um primitivismo de plástico, pode?). Digo isso com todo respeito às verdadeiras, bem como às falsas alegrias, afinal, estamos em um mundo democrático. Ainda que a democracia em que vivemos seja cínica e a única coisa que realmente partilhemos hoje seja a injustiça e o perigo. Ou, pra ir direito ao ponto, a morte que as festas tapam com suas vitórias paliativas sobre a dor. Não falo da morte natural que nos coloca em lugares metafísicos e transcendentais, espirituais e existenciais, mas a morte como uma impotência, um roubo, uma injustiça. Sabemos que, para os mortos, não há justiça. Também nós seremos mortos e talvez não haja justiça sobre nós, mas quem quererá enfrentar este tipo de pergunta sem deprimir-se ou olhar com raiva para o tom niilista da pergunta que nos tira da nossa paz?

Pois é esta justiça impossível o que estás tentando fazer ao rememorar a existência de Seu Ismael enquanto tens dele apenas a imagem da morte.

Pois a primeira coisa que me veio à mente foi que seu Ismael era um presente para ti. Claro que não do estatuto plastificado de um presente comprado em lojas de grife, mas um presente como o mítico corpo de Cristo que se deu àqueles que amava enquanto era ao mesmo tempo por eles sacrificado e, mais estranhamente ainda, adorado em sua imolação. Não estou falando aqui de nada que não seja o mito do Natal interpretado pelos cristãos. Cada povo e cada indivíduo (desde que também nos inventamos como sujeitos de pensamento e desejo) vive o mito à sua maneira. Neste sentido, não tenho dúvida que foi Cristo que encontraste morto na calçada. Era a atualização do Cristo do ano zero de nossa era. Era o Cristo pós-cristão, o Cristo do tempo pós-humano, do tempo pós-histórico. O Cristo de nosso tempo não está na cruz e não foi açoitado e humilhado, ele está na rua, perdido de si, bebendo,sem nome, sem sentido, sendo devorado pelas moscas que com seus mil olhos sabem que o ser humano não importa-se verdadeiramente consigo mesmo. Seu Ismael, homo sacer, o homem sagrado, aquele que pode ser morto por qualquer um e que, morto é o escândalo para o qual não temos mais sensibilidade.

Olha, minha amiga, o que significa um presente: é mais do que um objeto, é um “dado” do tempo. Não é passado, nem futuro, é atualidade. Por isso, perca este medo de estar “estetizando” o horror. A vida está cheia de horrores e só quem plastificou a alma é que diria uma coisa dessas das tuas gravuras. És uma das raras artistas que conheço que ainda se preocupa em relacionar a arte à vida, à história humana, à condição do ser humano e, sobretudo, no ponto escuro em que cada um está sozinho consigo mesmo.

Tentas salvar seu Ismael do escuro. E da maldita arma do silêncio que é tão bem usada pela ordem do mundo. Só isso. E sabes da impotência da tua arte diante da morte, porque és artista naquele exato lugar em que sabes que a vida não basta. És artista justamente porque trabalhas pela condição humana fazendo desta coisa que ainda chamamos de arte como um modo de colocar beleza no mundo, e a beleza, sabes bem, não é a cortina que tapa, nem a cirurgia moral que ortopediza a dor, é a memória de uma ferida. A memória que carrega consigo um desejo de negação.

Obrigada por nos dar a todos este presente negativo. Acho que o Natal adquiriu um sentido e que o carnaval que recorda a carne morta e sofrida pode ser menos banal do que este que finge a alegria.

Obrigada por nos lembrar do desejo de que a vida possa ser outra.

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